terça-feira, 12 de julho de 2011

TEATRO SEM SENTIDO

DIREÇÃO E NÃO-AÇÃO
ROBERT MALLET 

Uma obra teatral é composta fundamentalmente de três estratos: 1. a fábula, entendida como a tessitura das
ações e demais elementos do universo ficcional; 2. as ações concretas dos artistas que realizam a obra; 3. a organização de tudo isso em um todo. Esses estratos estão essencialmente relacionados aos papéis do autor,
dos atores (e os outros artistas envolvidos na criação material da obra, como um cenógrafo, um figurinista,
um músico...) e do diretor.
Numa montagem esses papéis podem ser cumpridos por quaisquer dos artistas envolvidos, e também por
mais de um deles, mas as três funções permanecem sempre distintas: temos sempre uma ação ficcional, uma
ação poética concreta (que veicula a ficcional) e a definição do lugar e do momento dessa ação poética na obra (direção).
A direção organiza a escritura cênica e por conseguinte determina em que direção a obra deve ser lida. É ela
quem orquestra as inúmeras ações dos artistas na composição poética.
Para que essa orquestração seja possível, é necessário que haja uma concepção que lhe sirva de estrela guia.
 Essa concepção não é necessariamente uma criação da direção, mas deverá ser assumida por ela. Seu papel é justamente permitir que a idéia da obra germine e desenvolva-se em cada um dos artistas envolvidos, escolher caminhos poéticos que propiciem esse florescimento sem tolher nem atropelar os processos criativos desses artistas, ao contrário, propiciando sua instauração.
O grande risco para o diretor é atropelar os processos, é querer realizar suas idéias sobre a montagem cedo
demais, de maneira exterior e despótica, sem atenção e escuta para todos os elementos que compõem a obra – desde os artistas que com ele colaboram até o tema ou texto abordado.
A ação do diretor tem certa analogia com o conceito chinês de wu-wei, “não-ação”, ou “ação pela presença”.
Uma ação poética que visa estabelecer as condições em que outras ações poéticas sejam possíveis e possam dialogar entre si. Isto é feito positivamente (sugerindo caminhos e procedimentos) e negativamente (retirando obstáculos, colocando os artistas em situações críticas).
Caso não seja assim, o resultado é um espetáculo que pode até ser magistralmente orquestrado mas sem vida própria, assemelhando-se mais a um ensaio teórico, ou a um manifesto, do que a uma peça artística.
Em uma conferência proferida em 1920, Jacques Copeau sintetizou tudo isto ao afirmar que o diretor, diante
 de uma obra dramática (em nossos termos, diante do estrato ficcional, seja ele um texto, um tema, um
 roteiro...), não deve se perguntar: “O que farei dessa obra?”, porém: “O que ela vai fazer comigo?...”

TEATRO SEM SENTIDO
Roberto Mallet


A crise atravessada pelo ocidente contemporâneo, que por certo se reflete também no teatro,
é uma crise de sentido, como já afirmou com todas as letras o psiquiatra vienense Viktor Frankl. 
  No teatro contemporâneo essa ausência de sentido resulta – por sua simples ausência - em
uma preocupação excessiva com os aspectos técnicos e performáticos da arte teatral.
No século passado Baudelaire já detectava na arte moderna uma obsessão com a forma e a despreocupação com o sentido:  "O gosto imoderado pela forma leva a desordens monstruosas
 e desconhecidas.  Absorvidas pela paixão feroz do belo, do singular, do encantador, do pitores-
co,
pois nisso tudo há graus, as noções do justo e do verdadeiro desaparecem.  A paixão frenética
pela arte é um cancro que devora o resto; e, como a ausência clara do justo e do verdadeiro na
arte equivale à ausência da arte, o homem todo se desvanece; a especialização excessiva de uma faculdade leva ao nada." (1)
Ciência e filosofia.  Técnica e sentido.  O que Baudelaire pede aqui ao artista é que ele tenha, ao
lado da mestria dos meios técnicos e poéticos para a construção da obra, uma visão.  Visão no
sentido de olhar inteligente, intuição intelectual.
A função da arte é iluminar.  A palavra Teatro significa "lugar onde se vai para ver"  -  para ver
as coisas que estão ocultas, que permanecem veladas na vida cotidiana.
Pindaro, poeta grego do séc. V a.C., conta, em uma de suas odes, o seguinte mito: Quando Zeus
fez o universo, chamou todos os deuses para uma festa no Olimpo, onde apresentou-lhes sua
obra.
  No meio da festa, quando todos já tinham bebido bastante ambrosia, levanta-se alguém e diz: 
 Está tudo muito bonito, é maravilhoso esse universo, mas tem um problema, não há nenhuma criatura que te louve por essa obra. Porque o homem, esse animal que fizeste, tem um defeito, ele se esquece
com muita facilidade."
Há uma bela palestra do Luiz Jean Lauand (2) em que ele comenta esse texto.  Nela ele se per-
gunta: 
 mas o homem se esquece de tudo?  Não, o homem só se esquece daquilo que é essencial.  O que
é periférico, o que não importa, nós lembramos.  Sabemos exatamente quanto temos em nossa
conta bancária, a que horas é o encontro que eu marquei com fulano, o que beltrano me disse há
 sete anos atrás, etc. - mas as coisas essenciais, nós esquecemos.
Voltando à narrativa de Píndaro, Zeus, para solucionar o problema apontado pelo deus olímpico,
cria as musas, filhas de Mnemosine, a memória.  A função das musas é exatamente essa: lembrar ao
homem dessas coisas essenciais. A obra de arte tem essa função.
E que gênero de coisas o teatro ilumina, onde incide particularmente sua luz?  O foco do teatro
está no mar de intenções, condicionamentos, disfarces, auto-enganos, alucinações, paixões...  O foco
do teatro está em tudo aquilo que compõe o substrato oculto das ações dos homens.
Parece-me que hoje estamos perdendo isso de vista.  A obra de arte se torna cotidiana, fala de
coisas com as quais já estamos em contato constantemente.  Talvez a influência da televisão, da
mídia, seja preponderante nisso. A dramaturgia televisiva é uma dramaturgia que só fala daquilo que
nós já estamos cansados de saber. Ela nunca me diz nada de essencial, nada de fundamental para
minha vida. Kandinski gostava de dizer que a função da obra de arte é tornar visível o invisível.
Eu, como artista, tenho que desenvolver um olhar que me torne capaz de ver esse invisível.  Como
 é que eu posso tornar visível algo que eu mesmo não estou vendo? O artista é alguém que vê mais,
e que por uma necessidade incoercível (mas também num ato de generosidade) constrói uma obra
em que as pessoas possam ter uma compreensão, uma intuição análoga à que ele teve.
A obra de arte dirige-se à nossa inteligência através dos sentidos, e portanto o que gera a obra de
arte também é um ato da inteligência.  O que é essa inteligência?  É a nossa capacidade de ver algo imediatamente, sem intermediários.  De compreender algo em sua própria essência.  Existe uma
espécie de luz que está dentro do homem, e que está no mundo também.  Ela me permite ver e, de acor-
do com a potência da minha visão, me revela mais ou menos ampla e profundamente o mundo.
Em uma obra de arte o artista, tendo visto alguma coisa, constrói um objeto com uma determinada estrutura que permite que outra pessoa olhe para esse mesmo objeto e tenha uma intuição análoga à
que o artista teve antes de criar a obra. É aí que reside sua função reveladora.
Uma vez que existe a visão, que tenha ocorrido uma autêntica intuição, a criação da obra depende
apenas de transposição dessa visão para a materialidade própria à cada arte.  Isto é claro sob a 
condição de que o artista domine os meios técnicos de seu ofício.  É como dizia Clarice Lispector: "Eu nunca tive sequer um problema de expressão.  Meu problema é muito mais grave, é de concepção."
Em síntese, e retomando Baudelaire:
"... toda literatura que se recusa a marchar fraternalmente entre a ciência e a filosofia é uma literatura homicida e suicida." (3)

Notas
(*)  Escrito para o jornal da Associação de Teatro Circo Negro - Teresina (PI).  [volta]
(1)  In "Curiosités esthétiques", cap. "L'école payan", http://www.bibliopolis.fr.  [volta]
(2)  Leia essa palestra aqui.  [volta]
(3)  Op. Cit.  [volta]

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